Futemax e a era da pós-pirataria (2024)

Na virada dos anos 1990 para os 2000, aconteceu um fenômeno na indústria fonográfica brasileira. Estávamos no fim da década do CD, como negócio, como objeto de consumo e como impulso para artistas e, especialmente, empresários de gravadoras. Era um tiro certeiro: CD vendia muito. Isso fez com que o custo fosse mais barato para uma produção em massa, gerando diversos efeitos nessa cadeia. Uma delas foi a fabricação de coletâneas caça-níqueis, que exploravam acervos de artistas, reunindo em gravações ruins, em formatos que se distanciavam de um certo valor artístico pelo qual muitos buscam ter em suas trajetórias. Disco era cultura, mas também era fábrica de salsicha: passou a ser feito de qualquer jeito, para qualquer público.

A indústria não contava, no entanto, com um outro efeito, colateral, um sintoma para essa ganância toda que dispersou o artista e transformou a música numa grande "qualquer coisa". Ao mesmo tempo que o CD ganhava esse status de commodity (commodity é cultura?), a entrada da internet comercial e a popularização dos PCs, com o consequente incremento das máquinas, levaram a algumas criações que mataram o formato: a comercialização de gravadores de CDs, o surgimento do mp3, os "players" de áudio e, principalmente, o Napster. Relembro aos mais jovens: Napster era um programa de compartilhamento de dados, em que você podia descarregar músicas num diretório e, uma vez dentro do programa, elas estavam disponíveis para que outros usuários as "baixassem". Junto ao Napster, proliferavam os sites de pirataria. E, por fim, a pá de cal: uma vez gravado o CD, uma vez a capinha do disco fotocopiada, tínhamos um CD. Que era vendido no "mercado paralelo" por menos da metade do original.

O álbum "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MCs, por exemplo, foi mais vendido em seu formato de CD pirata. Dado Villalobos, guitarrista do Legião Urbana, era executivo de um selo independente chamado Rockit!, no final dos anos 90. Diz ele que, certa vez, caminhava pelo centro de Porto Alegre, quando parou para ver uma banquinha de camelô. Lá estava, por um quarto do preço original, o exemplar de um disco da Ultramen, que era carro-chefe do selo. Dado terminou com o negócio. A indústria fonográfica tinha terminado. A pirataria venceu.

A indústria do disco se reinventou com o streaming. Mas os piratas sempre dão o seu jeito. Eles fizeram o mesmo com os filmes, as séries e programas de televisão. A modalidade, agora, é outra: é se a reinvenção da indústria cultural é o streaming, a pirataria digital já está um passo à frente. Agora, eles pirateiam o próprio streaming. Funciona de um jeito, grosso modo, bem fácil: pega-se o sinal e redireciona o mesmo para um site que hospeda aquilo que você assistiria pagando 19,90 para que você assista de graça. Vou chamar isso de pós-pirataria: se o consumo é on demand e você tem a sensação de que paga para ter um conteúdo personalizado, a nova pirataria reúne todas as possibilidades de escolhas num mesmo local. É como se fosse um buffet a quilo do entretenimento: você paga só para comer sushi, mas o mesmo sushi está à disposição junto com churrasco, pizza e feijoada.

O novo esperto do momento se chama Futemax. No site, você acessa, tendo a ciência de que vai receber um bom número de vírus na sua máquina, a todos os jogos que alguma emissora de televisão ou algum canal de streaming vai transmitir. É o cardápio dos deuses. Os piratas nos induzem a economizar aqueles trocados e jogam numa tela, a um clique, tudo aquilo que a gente teria que pagar para receber. Do mesmo jeito. Com a mesma imagem. Sem a mesma segurança, é verdade.

Por que, então, pagar? Ora, existe uma questão ética inicialmente. Pirataria é violação ao direito autoral. Depois, existe uma questão se segurança digital que é infringida quando a gente entra num site desses. Eles, definitivamente, não são seguros. E, por fim, você não sabe quem está por trás da empreitada. A gente está realmente economizando uma graninha ou, de forma indireta, está contribuindo para que contraventores tenham sucesso na internet? Mas, inegavelmente, é sedutor ver jogos sem pagar. O futebol já estava caro no estádio. Ele também está caro em casa.

A elitização do esporte chegou ao consumo. Disfarçada de "inovação", para o deslumbramento daqueles que se agarram em "qualquer coisa" que a internet apresenta como novidade, a pós-pirataria se reinventa mais rapidamente que os obsoletos modelos de gestão e comercialização do "novo futebol". Não acredito que a pós-pirataria vai matar o streaming, como aconteceu com o CD. Mas ela vai exigir algum procedimento de quem quer dominar o mercado pelo jeito certo. Sob pena de, também, considerarmos o futebol, nossa paixão, mais um monte de "qualquer coisa". E eu já escrevi aqui: as coisas desaparecem por excesso, não por escassez.

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